Vamos reproduzir aqui uma matéria publicada no jornal
O ESTADO DE SÃO PAULO, de PEDRO FERNANDO NERY. A matéria e a opinião do
articulista nos parecem importante para uma reflexão dos rumos e mudanças de
paradigmas no mundo do trabalho com as novas tecnologias. Devemos ficar presos
aos velhos costumes, aos antigos conceitos ou pagar o preço pela liberdade? Leiam, reflitam e opinem. Esse novo
paradigma parece permitir que muitos
continuem no mercado de trabalho e gerem renda para suas famílias em tempos de
crise como o que vivemos. Pelos dados oferecidos no artigo, algumas categorias
estão ganhando mais como empreendedores do que como empregados. Então segue a
matéria.
Pedro Fernando Nery*, O Estado de S.Paulo
10 de dezembro de 2019
DOUTOR EM ECONOMIA
Eram os 39 do segundo tempo, o
Corinthians perdia de 1 a 0 para o Palmeiras. Ataque corintiano, a bola sobrou
para Bruno Octávio. De muito longe da área, o jogador do Corinthians tentou
resolver sozinho, chutando dali mesmo e isolando a bola. O narrador Milton
Leite não se conteve, chamou o momento de patético e lançou um bordão popular
nos anos seguintes: agora eu “se” consagro! A expressão ironizava o jogador
fominha que, empolgado e imaginando um momento de glória, acabava fazendo uma
tolice.
A decisão sobre a Loggi na sexta é um
desses momentos de nossos operadores do Direito que lembram o “agora eu se
consagro”. A startup brasileira é espécie de Uber de entregas, com plataforma
que conecta milhares de motoboys (cadastrados como microempreendedores individuais)
a clientes. A Justiça do Trabalho determinou que todos sejam contratados,
mandando ainda a empresa disponibilizar estacionamento e pagar R$ 30 milhões de
multa. A razão seria “dumping social”: o valor estipulado equivale a todo o
faturamento de 2018 (menos que os R$ 200 milhões pedidos pelo Ministério
Público do Trabalho), autor da ação. Pode ainda ter de pagar R$ 10 mil por
motoqueiro que não for contratado via CLT.
O ramo trabalhista é talvez o com mais
adeptos do movimento “agora eu se consagro”, com juízes e procuradores
voluntaristas produzindo decisões deletérias. A turma do agora eu se consagro
adora chavões como “o trabalho não é mercadoria” (em negrito na decisão do caso
da Loggi) e “cada vida não tem preço” (presente).
Focaremos nas possíveis consequências
econômicas da decisão, antecipadas pela própria juíza, quando lembra que o
cadastro na Loggi pode ser “um patamar melhor do que eventual desemprego ou
miséria”. Quanto à presença ou não de vínculo empregatício, registra-se que a
decisão peita o entendimento do STJ, que em setembro decidiu em caso semelhante
que a situação é de autônomo, não de empregado. A juíza do Loggi justifica a
decisão com base na reforma trabalhista, que passou a permitir o contrato por
hora (intermitente): mas vale registrar que o intermitente é convocado pelo
empregador, enquanto os usuários de aplicativos escolhem quando logar nas
plataformas, e por quanto tempo ficar.
A contratação pela CLT implica custo
muito maior do que o contrato do MEI. O valor pode ser mais que o dobro,
considerando encargos previdenciárias e trabalhistas. É ingênuo supor que o
lucro dos investidores arcará com a mudança. A empresa tentará repassar o custo
para os consumidores e, o que não conseguir, para os motoboys (e é fácil para
os clientes substituir serviços como delivery de sanduíches).
Supondo que a regra valesse para as
demais plataformas, é intuitivo que os motoqueiros – muitos que hoje ganham
mais do que a renda média nacional – passariam a ter rendimentos líquidos
menores. Haveria restrições a novas vagas e muitos seriam desligados, voltando
ao desemprego de que tantos só conseguiram sair pelo colchão dos aplicativos. A
comparação com a jurisprudência da Califórnia reconhecendo vínculo é
inoportuna: a região tem desemprego 3 vezes menor, renda 5 vezes maior e o
vínculo empregatício é em uma legislação trabalhista das mais flexíveis do
mundo. As consequências aqui serão piores. (Em tempo: estudo de big data de
outubro no Journal of Political Economy identificou que a flexibilidade da plataforma
traz ganho equivalente a 40% da renda para motoristas da Uber, em relação às
alternativas).
A ironia do “trabalho não é
mercadoria” que é exatamente como produtos guardados num armazém que ficam a
multidão de desempregados vítimas dos juízes do agora eu se consagro. Mês
passado um ex-presidente da associação de juízes declarou inconstitucional a MP
do Verde Amarelo, que nem estava em vigor. Mais cedo, o TRT-MG reconheceu
vínculo entre motoristas e Uber, e a decisão (“histórica”) foi rapidamente traduzida
para inglês e espanhol.
No sábado, o MEI foi visto como fonte
de direitos para a turma que malhou a reforma trabalhista, quando artistas
foram excluídos do alcance do microempreendedor individual. Atrizes globais que
posaram com carteiras de trabalho em protesto à flexibilização de 2017 foram
rápidas em criticar o fim do MEI para a classe. Deputadas da esquerda também
apontaram o risco de desemprego para artistas, já que as alternativas são o
contrato via CLT ou autônomo tradicional, mais caro. O MEI garante direitos
previdenciários a um custo menor para contratantes com menos tributos ao
contratado. A decisão acabou revogada: o lacre ficou.